nunca precisamos tanto de cultura e arte e QI tb!

"Nunca precisamos tanto de cultura e arte
Sempre falamos em "cultura brasileira", mas não sabemos o que isso quer dizer. Cultura é o quê? Uma senhora grega, de camisola, segurando uma tocha?
Cultura é uma índia negra e portuguesa, de cocar e saiote? Cultura é um museu erudito que rima com "sepultura"? Fazemos boquinha elegante para falar em "cultura", mas sempre sobra um gosto de coisa insignificante, haja vista a baixa verba que tem no orçamento da União.
Em nossa tradição de bacharéis babacas e fazedores de frases, colonizados de cartola e fraque, sempre amamos as "coisas do espírito", "a alma minha gentil", o "ora direis ouvir estrelas" ou o "vai-se a primeira pomba despertada" com que nos embriagávamos nos botequins da República Velha, em meio à febre amarela e à varíola. Nosso atraso endêmico nos levou à supervalorização da "cultura" como substitutivo para a impotência política.
Era nossa ilusão e consolo: "somos pobres, mas com uma cultura rica..." No entanto, tirando alguns momentos ativos como no getulismo, com Capanema e cia., a maioria de nossos "avanços" culturais sempre foi "sem querer", independentemente dos desejos de teóricos ou de mecenas. Muitos progressos culturais vieram como "irrupções" de causas materiais, de mutações industriais e comerciais: cultura do café e o Modernismo, o crash da Bolsa em 29 despertando nossa "identidade" na Revolução de 30, a indústria fonográfica americana e o rádio projetando a música popular dos anos de ouro, a industrialização juscelinista possibilitando a arquitetura, a bossa nova, o cinema, a Phillips e outras gravadoras veiculando a música dos anos 60, a TV, etc. Na época do jango-populismo até 64, influenciados pela guerra fria, pelo marxismo "fora do lugar" e pela crença de que o presidente faria uma revolução tropical (!), os artistas e intelectuais se convenceram de que o Estado poderia criar uma "cultura brasileira" revolucionária, de modo a tirar o País da "alienação" e salvar, pela arte, os oprimidos. A cultura seria uma política.
O subdesenvolvimento nos dava uma "superioridade" sobre os "falsos problemas europeus", como o absurdismo ou sobre o medíocre comercialismo americano. A pobreza era nossa maior riqueza. Vivíamos na divisão de "centro e periferia", colônia e metrópole, vítimas santificadas do imperialismo.
Nossos defeitos institucionais endêmicos ficavam ocultos, já que a culpa era dos outros. Chegamos a fazer a glamourização da incompetência. Era a poética da precariedade contra a técnica dos países desenvolvidos "decadentes".
Achávamos a miséria até uma nova estética, alimentando o mito de que o tosco, o simples, o pobre e até o burro são ungidos por uma certa "verdade sagrada". O povo, na sua ignorância, seria portador de uma compreensão profunda do óbvio. Essa idéia reacionária rola até hoje.
As tentativas de política cultural nessa época se limitaram à ingênua generosidade dos CPC's e a vagas promessas do novo Estado popular que viria.
O golpe de 64 foi uma porrada na utopia. No entanto, a derrota nos "ajudou" a ver o atraso de nossas certezas esquemáticas. Espantosamente, a ditadura foi até um "incentivo" para a criação. O autoritarismo violento, a censura nos deram uma identidade provisória, de cabeça para baixo. Valíamos pelo que "não" tínhamos, éramos vítimas reais e passamos a ter uma meta: a liberdade.
Nos anos de chumbo, houve um surto de heróica criatividade inesperada: protesto, tropicalismo, contracultura, cultura de resistência... e até as sobras dos petrodólares que alimentavam o estatismo militar deram para sustentar o cinema dos anos 70, quando chegamos a competir com os filmes americanos. A Embrafilme realizou o paradoxo de financiar até um cinema crítico de esquerda com grana da banca internacional num regime de direita.
Coisas do Brasil...
Até que em 82, com a recessão mundial, fecha-se a torneira da grana internacional e completa-se a falência do Estado militar. A democracia volta - para pagarmos a conta da dívida externa. Tivemos a Lei Sarney que funcionou como um mecanismo provisório, logo exterminado por Collor, em 90, na hora da morte súbita do comunismo, diante dos olhos deslumbrados do capitalismo.
Ficamos sem rumo. Para onde ir? Para o Estado ou para o mercado? O trauma da globalização foi mais profundo que a derrota de 64, só que menos visível, indolor, com um cheiro de "progresso" liberal. Ficamos sem utopia, sem exploradores óbvios, sem inimigos claros, substituídos pelo difuso "capitalismo sem rosto" de hoje.
De um lado, isso provocou o surgimento de um oportunismo de massas, pagodeiro, o alívio da seriedade pela vagabundagem artística. Por outro lado, fez nascer um neonacionalismo rancoroso e feroz, uma ideologia cultural do "bode preto", trabalhando com conceitos superados, um mix de farrapos de esquerda, azedume punk, pálida tristeza, neurose e sociologia simplista, sonhando com um regresso leninista ao Estado. Durante os anos FHC, as sobras da Lei Rouanet de Collor e da Lei do Audiovisual conseguiram avanços, apesar do golpe das inúmeras "fundações" de bancos - principal escândalo atual - usando dinheiro público para marketing próprio.
Hoje, depois que o Osama mudou o Ocidente, estamos sem o velho Estado Nação e sem um nicho no mundo global. Nem centro, nem periferia. Uns sonham com a volta do papai-Estado, outros, com a idealização do mercado. Ao menos, hoje, temos mais clareza entre dirigismo e privatismo. Nesse mundo "bushiano" que se avizinha, que vai desmoralizar os sonhos humanistas da arte e de reflexão, nosso grande desafio cultural é redescobrir nosso lugar crítico, nossa esperança nacional, sem slogans, mas com imaginação, tentando entender este novo tempo a nosso favor. Cultura precisa de dinheiro, mas sem dirigismo; só estímulos. Vivemos nem só de mercado, nem só do Estado. Lula está no meio."

Arnaldo Jabor